terça-feira, 20 de abril de 2010

A Melhor Maneira: sobre rotinas, toreadores e uma merecida orelha de touro...


O rosto do simpático palestrante lembrava o de Pierce Brosnan, mas pouco do que ele dizia chamava minha atenção. Falando sobre o mercado editorial tupiniquim e o acesso a novas tecnologias de informação, o sujeito tentava se posicionar em meio às dúvidas, críticas e opiniões dos poucos alunos presentes. Durante as quase três horas de animada conversa, eu permaneci praticamente calado, só abrindo a boca para dizer que eu era jornalista.
Havia dois dias em que eu só pensava naquele maldito vulcão islandês. Uma mega-erupção após 200 anos, e parte do tráfego aéreo europeu fora paralisado por causa da fumaça. Era algo deveras interessante. Segundo especialistas, a fumaça expelida a milhares de metros possuía partículas minerais relativamente pesadas que, em contato com as turbinas dos aviões, paravam os motores em plenos vôo. A menos que o Velho Continente quisesse testemunhar uma chuvarada de passageiros, os aeroportos cancelariam seus vôos.
A bordo do 571 em direção à Lapa, a história não foi lá muito diferente. O tráfego evoluia normalmente em uma noite fresca de sexta, mas ao redor lascas de torpor ainda travavam irregularmente as grandes turbinas da metrópole. Pitboyland era como o tal palco de Shakespeare; cheio de criaturas, criadores, monstros e alguns poucos humanos. Bastava um pouco de medo para que alguém fosse engolido sem dó por vícios, escarnios e traumas. Apesar das facilidades, Pitboyland era traiçoeira.
A Lapa não trazia novidades. Seu formigueiro de funk, forró, tecno e rock se espalhava por entre os arcos e invadia, sombrio, as dezenas de casas de shows. Milhares de pessoas se agrupavam, gritavam, berravam e bebiam em um festival de catarse que varava a madrugada e não raro terminava iluminada pelos primeiros raios de sol. Na entrada do Circo Voador, uma legião de camisetas pretas se aglomerava nas barraquinhas de bebidas e comidas ou apenas conversava sobre as espectativas em torno do inédito show do Social Distortion.
De fato, poucos entendiam o porquê da banda oriunda de Orange County não ter, em seus 30 anos de punk-rock, tocado em solo tupiniquim. Os Ramones já o tinham feito várias vezes, provando que o público local – e sul-americano em geral – não fazia nada feio quando a história era prestigiar lendas do rock. Napalm Death, Nuclear Assault, D.R.I., Danzig, Faith No More, Anthrax, Agnostic Front, isso apenas para citar bandas relativamente novas. Todas haviam testemunhado a persistência e a paixão do fãs tupiniquins. Mike Ness – parafraseando o ditado popular – estava certo: antes tarde do que nunca.
Às 22 horas, a pista do Circo Voador estava vazia. Os alto-falantes jorravam o melhor do trash-metal e do punk, enquanto os parcos espectadores bebiam tranquilamente ou compravam camisetas e bonés oficiais das mãos de um argentino rechonchudo em uma das duas barracas de merchandising. Apesar do preço assaz salgado – 40 reais por uma camiseta só pode ser efeito da crise argentina -, adquiri uma lembrança, comprei um chopp e uma água e caminhei até a grade em frente ao palco.
A banda de abertura, Carbona, subiu por volta das 23:15. Um college rock mais que decente e uma boa escolha para esquentar os ânimos. Terminada a apresentação, é hora dos roadies se desdobrarem em mil para desmontar e montar o palco. O público começa a aparecer até encher pista e arquibancadas.
00:15. O Social Distortion entra em cena calmamente, ao som de uma música instrumental de tourada típica de um romance de Hemingway. Afinam-se as guitarras. Matadores e touros começam a se enfrentar na arena, e abrem a noite com um cover de "Under My Thumb", dos Rolling Stones. Sucessos e curiosidades desfilam no Circo: "Singapore", "Ball and Chain", "Bad Luck", "Mommy’s Little Monster", "Nickles and Dimes", entre outras (não tocaram "I Was Wrong", o que considero imperdoável...). O público responde bem. A banda começa a se acostumar com a vitalidade da audiência. Ness tenta alguns contatos; membros do público tentam subir no palco (cada tentativa é drasticamente reprimida por seguranças, roadies ou pelo próprio baixista com cara de poucos amigos...). Ness tropeça em fios, tomba de costas mas continua solando. Objetos diversos (camisetas, bandeiras, chaveiros, chapéus) são lançados em direção ao palco. Músicos e fãs são suor puro, na tentativa – bem sucedida – de exibir o melhor do punk rock californiano.
Apenas 30 centímetros separam a grade de contenção do palco, o que apenas estreita o bom diálogo entre as duas partes. Isto é um show de rock no sentido pleno do termo: a vigorosa entre suor, êxtase e redenção.
Ao sair do Circo Voador, ainda com os últimos acordes de "Ring of Fire" na cabeça, compro uma última cerveja e subo no 464 cujo cobrador, desperto de um profundo sono, reclama, sem sucesso, de minha nota de 20 mangos. Lentamente, o ônibus abre caminho em meio à massa humana da Lapa que brota dos estabelecimentos culturais ou apenas lota calçadas e ruas no intuito de conquistar lascas de amizade, embriaguez e sexo sem compromisso.
Minha camiseta da banda está encharcada, meu pescoço doi e minha cabeça roda. Meu corpo também não se importa com a cadência irregularmente violenta do busão. Eu não me importo com os dois adolescentes embriagados que tentam escapar do fantasma da masturbação por meio de cantadas requentadas dirigidas a um grupo de meninas cuja média etária não passava dos 14. Apenas olho para algum ponto invisível pela janela suja.
Aquele havia sido um dos melhores shows de 2010, e poucos ousariam apostar que o Social Distortion não faria de Pitboyland uma local certo em sua agenda de turnês. Com o lançamento de seu novo álbum previsto para setembro deste ano, a banda já cogitava voltar ao território tupiniquim no primeiro semestre de 2011. Isto era respeitar o reconhecimento de um público apaixonado.