quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Vicente

Meu irmão ligou de Hardcore Brasília nesta manhã de quarta-feira. "O Vicente morreu", disse, sem meias palavras. "câncer de fígado ou algo assim", continuou.
Não foi um choque. Muitos sabiam que o famoso garçom do Empório estava internado havia algum tempo, e que já havia sido internado outras vezes. A notícia talvez tenha sido uma surpresa, mas, repito, não me deixou atônito ou me fez desabar em lágrimas. Provocou, sim, uma enxurrada de imagens oriundas da minha memória.

A primeira vez em que fui ao Empório, acompanhado de colegas do Liceu Molière e de amigos de Brasília. O Vicente vestido de Corcunda no Dia das Bruxas. O dia em que a fivela do meu cinto caiu na privada do tristemente famoso banheiro masculino. Os esporros que o Vicente dava no não menos saudoso garçom Gonçalo. os milhares de urubus e gaviões que tentavam abocanhar o mulherio alheio. Os outros milhares de turistas que se espantavam ao serem ignorados pelo barbudo garçom todo vestido de preto.

A famosa noite em que eu, Renata e Dan nos sentamos em uma das mesas da janela e conversamos sobre tudo e todos. A noite em que Drew Barrymore e seu namorado baterista dos Strokes foram ao Empório. As tábuas de queijos e frios, as pizzas, os sanduíches, os bolinhos de aipim e todos os acepipes que transformavam azia e mal-estar em palavras menores. As brigas - dentro e fora - do Empório. A rua Maria Quitéria congestionada. Os berros e urros do Vicente pedindo passagem em meio a um maelström de almas sem futuro distante.

As cantadas, os flertes, os beijos, os agarros e os foras de toda noite. A vez em que uma menina tropeçou nos degraus da escada e deu de boca no chão, sangrando como em um filme de Peckinpah. As noites em que fechamos o bar e continuamos a bebedeira nos quiosques à beira-mar. As contas superfaturadas. As contas que não foram pagas. as contas que simplesmente não vieram. Os bilhetes escritos em guardanapos. As baratas infiltradas no chão e no teto. O (felizmente curto) período em que o Empório serviu chopp Kaiser (depois de seis, quem diabos se importava?...).

A época em que havia uma "pista de dança" improvisada entre a escada e o D.J.. As épocas em que o Empório era "hippie demais", "rock demais", "grunge demais" ou "baixo nível demais". Os motoqueiros, as prostitutas, os drogados, os pequenos traficantes e os solitários de plantão. O mal-estar entre o Dan e aquele mórmon americano. O "território" pós-rompimento da Sandra. As namoradas dos outros. Os namorados das outras. Aquele cara que contava histórias do tempo em que era roadie do The Who.

Os vexames, as babaquices, os furos, os atrasos, os acessos de mal-humor, o ciúme, o ódio e o desespero. A bebedeira generalizada salpicada por alguns momentos de amizade sincera em um pequeno ponto da Zona Sul de Pitboyland.

E tal qual Rasputin expulso de sua aldeia, lá prostrava-se o soturno Vicente. Confidenciando, conversando, explicando e/ou berrando com todos e com tudo. Sabíamos pouco sobre ele (gaúcho, ex-ator, uma irmã, sabe-se lá o que era verdade e o que era mentira...), mas tínhamos certeza de que o sujeito em si era verdadeiro, desprovido de salamaleques (ok, ele fazia questão de ser gentil com as moças beijando-lhes a mão...) e desculpas.

lembro, certa feita, que cheguei ao Empório e pedi um chopp. "Não tem", respondeu Vicente. Pedi uma cerveja. "Não tem", repetiu. Não titubeei e disse que iria comprar algumas latinhas na praia. "Compra uma pra mim", disse ele. Entreguei a do Vicente e sorvi as outras em uma das mesas de tampo de mármore.

Desejar que o Vicente descanse em paz é, no mínimo, atentar contra a honra do barbado e ilustre profissional. Por isso, este vosso humilde escriba deseja que o Paraíso ou o Inferno - caso existam - se preparem. Quanto a nós, reles consumidores, tenhamos a certeza de que os Empórios e os Vicentes habitam nossos corações e mentes. E, caso nos fosse dada a oportunidade, fossem devidamente gravados em nossas lápides.

Como dizia o próprio Vicente, "Boa Noite, Cavalheiros"...