Quando me olhei no espelho naquela manhã, percebi que estava com a cara do Cat Stevens, ou sei-lá-qual-o-nome-que-o-sujeito-tem-atualmente. Barba grande, óculos de nerd, feições de coitado que oferece a outra face ao invés de revidar. Fui até a cozinha, me servi de café preto e sentei na cama para refletir sobre a noite anterior.
Estava em um ônibus em direção ao Leme. Vi uma banda do exército tocar hinos ufanistas em uma praça de Ipanema enquanto um mendigo dançava alegremente na frente de múmias saudosistas do regime militar. Também vi uma freira ser presa por dois guardas municipais em Copacabana e ser acusada de roubo em uma padaria.
O restaurante, localizado em uma longa rua do Leme, era conhecido por sua comida espanhola e pela qualidade de seus frutos do mar. Os garçons eram atenciosos, mesmo se desvencilhando de tudo e de todos no apertado espaço dos corredores entre as mesas. Eu estava dividindo uma paella com arroz de açafrão com minha ex-esposa, e bebendo meia-garrafa de um vinho tinto decente, quando o casal se acomodou na mesa ao lado. O homem falava espanhol, era alto, ruivo, e devia ter uns 40 ou 50 anos. A moça tinha metade disso, era natural de Niterói, e falava o necessário acompanhado de um leve e tímido sorriso. Ambos vestiam bermudas, e pediram o polvo à Espanhola.
Lá pelas tantas, eu e minha ex-esposa começamos a falar de família, e não demorou muito para que eu começasse a baixar a lenha de sempre na minha: de como faziam as mesmas perguntas, de como se esqueciam dessas mesmas perguntas em menos de uma semana, de como contavam piadas racistas e sem graça, de como enchiam meu saco com essa história de concurso público, estabilidade e aposentadoria garantida. Concluímos que, da próxima vez que fosse convidado para um almoço de família, eu empregaria as mesmas "técnicas" a que sou submetido. Esqueceria o nome dos primos, perguntaria se eles ainda têm a casa em Teresópolis (é claro que têm...), ou se o filho de minha prima ainda estava no maternal (mesmo se ele estivesse com 8 ou 10 anos...).
Logo logo minha família me consideraria um jovem senil, "persona non grata" e provável usuário de drogas alucinógenas pesadas. Daí para não ser mais convidado para almoços em família seria um passo digno de Neil Armstrong.
Era um belo plano.
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